segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

NARRADORES DE JAVÉ




A obra, centralmente, discute o problema de uma comunidade pobre, como inúmeras que se podem registrar ao longo desse Brasil, para além do litoral, que vive o drama da mudança em razão de obras, ou melhor, do dito “interesse público”.Parece uma sina daquele povo javélico, como bem adjetiva o personagem Antônio Biá, vivido pelo excelente José Dumont, um dos protagonistas da nova saga. Desde o tempo da colônia, que eles são expulsos para terras estranhas em razão do interesse do Estado. Se noutros tempos a Coroa desejava explorar o ouro, agora o motivo era a construção de uma represa.


















Com este pano de fundo, o diretor demonstra que o Estado, ou os seus representantes, usando do seu poder de império, destitui as minorias, com ênfase aquelas desprovidas da capacidade de articulação social, dos seus mais comezinhos direitos. É o Estado onipotente e avassalador, desrespeitando a tradição e os saberes de letrados e iletrados.

É patente, e talvez propositadamente trazida no filme, a discussão acerca da presença ainda forte, mesmo nos tempos contemporâneos, tempos esses da comunicação virtual e em tempo real, do poder da tradição oral - comum na Idade Média - no Brasil, ainda  presente em muitas comunidades. Os Narradores de Javé, cada um a seu modo, retratam a realidade de maneira polifacética. Em cada uma das cabeças daqueles simples e rudes narradores, o mundo javeliano é construído e impregnado pelas suas subjetividades, pelas suas experiências e pelos seus desejos, como, de fato, o mundo é ainda feito. A epopéia javeliana teria como grande artífice, aquele eleito por livre e espontânea necessidade, que demonstrava ser o único que dominava as artes literárias: o execrado Antônio Biá. Ícone do homem letrado, com todas as suas virtudes e fraquezas, Biá aproveita-se da situação para obter vantagens e tirar proveito dos desprovidos daqueles saberes.

Biá busca construir uma história à sua forma, porém, percebe que, por mais que se esforce, a sua história não será convincente para o seu propósito: construir uma peça científica que demova as autoridades do intento de construir a barragem e fazer desaparecer aquela comunidade de pobres e ignorantes dos saberes da ciência.

Parece que Biá e o louco são os únicos dotados de clareza até que, forçadamente, a dita ciência por um dos seus prepostos coloca-se frente a frente com Biá e toda a comunidade, demonstrando a pequenez daquela atitude e daqueles conhecimentos para opor resistência às determinações do Estado. Ali se opera o confronto entre a tradição oral e a moderna ciência, lastreada no grafocentrismo e na tecnologia que, talvez sensivelmente, registra numa nova linguagem, o vídeo, os depoimentos sonhos e frustrações daquela gente humilde para a posteridade.

Biá desiste de registrar aquela história e entrega os pontos, rendido pela desesperança da utilidade do seu trabalho, ou melhor, talvez, pela incompetência de construir, a partir daquela tamanha diversidade de mundos, através da linguagem escrita, com as suas limitações, algo que fosse ao mesmo tempo científico e agradasse a todos. Rende-se e devolve ao povo a responsabilidade que é sua: construir uma nova Javé, com novos sonhos e enigmas não tragados pelas águas do progresso. Biá é a memória e, ao mesmo tempo a desconstrução dessa memória para se abrir à possibilidade de novas leituras do mundo. Biá é a tradição, que se coloca à disposição da ciência para um novo diálogo, no qual a fantasia conviva com a necessidade, onde a barriga não coma só poesia e onde a mentira também possa ser verdade.

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