"A arte contemporânea será tanto mais eficaz quanto mais se orientar em função da reprodutibilidade e, portanto, quanto menos colocar em seu centro a obra original." (BENJAMIN, Walter. O obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica, página 180).
Comentaremos à luz do pensamento do próprio WB e da sua clássica obra.
Lógico que a reprodução, das obras de arte especificamente, não é privilégio ou novidade do século XX. Mesmo nas sociedades de produtores, portanto, antes da sociedade de consumo, que a história registra, através dos escribas, a existência de 'artistas' que reproduziam peças de outros artistas; isto dá o tom de que a reprodutibilidade de que trata o WB é algo diferente.
Ocorre que o surgimento da fotografia, depois da xilogravura e da imprensa, deu ao homem uma capacidade inusitada: reproduzir, com perfeição técnica nunca imaginada, a criação humana, a arte. O cinema, como avanço natural da fotografia, veio coroar esta perspectiva que Walter Benjamin desenvolve na obra em comento.
Benjamin pertenceu à Escola de Frankfurt e, portanto, possui referenciais marxistas o que por certo, influenciaria a sua obra. O primeiro parágrafo de "A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica" deixa antever esta influência, apesar de conter entendimento um tanto quanto enviesado do pensamento marxista. Vejamos :
“Quando Marx, empreendeu a análise do modo de produção capitalista, esse modo de produção ainda estava em seus primórdios. Marx orientou sua produção de forma a dar-lhes valor de prognósticos...... Concluiu que se podia esperar desse sistema não somente uma exploração crescente do proletariado, mas também, em última análise, a criação de condições para a sua própria supressão.”( A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica, BENJAMIN, Walter. pg.165)
Pelo que se depreende do ponto de vista benjaminiano parece-nos que ele se olvida da centralidade do pensamento marxista no estudo do modo de produção capítalista. Marx não propõe a sua teoria a partir de um mero exercício de prognósticos, desprovidos de fundamentações históricas mas, ao contrário, o fez a partir da análise do próprio capitalismo e das suas reais contradições.
Isto se torna importante para a discusssão do trecho por uma razão: quando Benjamin diz que o capitalismo cria condições para a sua própria supressão está, também, se referindo às criações advindas da técnica e da tecnologia, cada vez mais aperfeiçoadas no modo de produção capitalista, e com as quais ele, o capitalismo, se desenvolveu e se reproduziu.
Tecnologias estas que permitem a reprodutibilidade cada vez mais acentuada, também da obra de arte, transformando-a, ou melhor dizendo, tornando-a cada vez mais popular e acessível, ao mesmo tempo em que a transforma em objeto de consumo a ponto de os indivíduos não mais se contentarem em contemplá-las, mas de querê-las.
“Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto, de tão perto quanto mais possível, na imagem, ou antes na sua cópia, na sua reprodução”. ( A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica, BENJAMIN, Walter. pg.170).
A reprodutibilidade, viabilizada pelas possibilidades tecnológicas, notadamente com o advento do cinema, é um golpe no que ele denominou por aura e que Pierre Bourdieu, mais tarde em A Reprodução vem a chamar de illusio. A repetibilidade do conteúdo artístico destrói a sua autenticidade, aquilo que lhe dá o caráter de unicidade e originalidade que reforçava a tradição.
Assim a fotografia e, mais notadamente o cinema, representam a quintessência do seu pensamento no que tange à reprodutibilidade. Infelizmente, WB não pode assistir ao advento da televisão, da internet, ou mesmo do cinema digital, porém, aqui sou eu quem faço um prognóstico, por certo, se vivo fosse, estaria bastante entusiasmado com as possibilidades dos aparatos tecnológicos da contemporaneidade.
Voltando à questão, o cinema para WB alcança, no campo das artes, o apogeu daquilo que o teatro sempre buscou, ser um produto de massa. O cinema o faz pois consegue ir onde as massas se encontram. A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica traz a proposta de uma alteração no ponto de vista da estética que se centra na questâo: o que é arte afinal? Esta infinita capacidade de se reproduzir distorce a tradição e toda a experiência em arte até o advento da fotografia e do cinema, pois quanto mais reprodutível, menos autêntica, menos aurática também menos tradicional se tornará a arte como valor cultural.
Isso não destoa dos objetivos de WB pois, de quanto mais eficiência se dotar a reprodutibilidade, mais rapidamente de revelará que a concepção daquilo que se estabeleceu como padrão, categoria universal de estética, poderá não passar de um consenso permeado por conceitos e interesses de uma classe determinada.
A reprodutibilidade é um movimento anti- aurático, portanto. Paradoxalmente, passa a ser um instrumento de controle que atua no plano não só das individualidades mas, principalmente das coletividades. Deste caráter contra-revolucionário do cinema, ou das artes massivamente reprodutíveis, utilizou-se o fascismo para a corrupção das massas.
“Pois o caráter cinematográfico dá um caráter contra-revolucionário às oportunidades revolucionárias imanentes a esse controle.” ( A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica, BENJAMIN, Walter. pg.180).
Portanto, a eficácia da arte como instrumento de controle, na era da reprodutibilidade, dada a importância do cinema como instrumento de dominação e alienação política, transforma-se numa necessidade central, uma busca incessante. Tanto mais eficaz será, quanto menos aura possuir, isto é, quanto mais e melhor viabilizada for a sua reprodutibilidade, de levar a milhões, com velocidades e quantidades cada vez maiores, sem que se possa permitir contemplação mas, apenas visualização, consumo, adiando o seu caráter de aparato revolucionário, utopia que talvez não vejamos, em sua efetividade.
No cinema, o homem, o ator, não mais representa, ele é agora representado pela máquina, tragado por ela que o absorve e processa em efeitos especiais e milagres humanos, ao contrário do ator teatral que para as massas, organicamente fazia o seu labor, ou melhor, quase ofício.
"O ator de teatro só representa a si mesmo" (BENJAMIN, Walter. O obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica, página 181).
A técnica da reprodução abstrai o homem da mundanidade da tradição e o torna, com sua arte, produto de série, através da produção em massa, levando-a, agora ao espectador, num movimento reverso ao da arte aurática, que simplesmente a vê sem contemplar, sem invadi-la. Que é isto senão um movimento de intensa renovação e de ruptura gradual com a tradição?
"E, na medida em que essa técnica permite à reprodução vir ao encontro do espectador, em todas as situações, ela atualiza o objeto reproduzido. Esses dois processos resultam num violento abalo da tradição, que constitui o reverso da crise atual e a renovação da humanidade. Eles se relacionam intimamente com os movimentos de massa, em nossos dias. Seu agente mais poderoso é o cinema" (BENJAMIN, Walter. O obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica, página 168-169).
Assim também, o ator de cinema (ou será que ator é a verdadeira expressão para WB?), representa para as máquinas e para uma equipe que ao bel prazer pode intervir e mesmo interromper quantas vezes o quiser, alterar a qualquer momento, cortar, editar, enfim ter o controle total da criação. Devem, assim representar o menos possível viver sendo o próprio personagem.
“os maiores efeitos são alcançados quando os atores representam o menos possível” ( A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica, BENJAMIN, Walter. pg.181).
A era da reprodutibilidade estetizou a arte da política e, da Arte fez um dos seus instrumentos, cujas potencialidades se ampliam com a perda da aura, do autêntico, com a capacidade de reprodutibilidade e massificação da obra, tornando-a mais eficaz aos propósitos de quem a controla, como diziam os frankfurtianos, a indústria cultural.
Portanto, para WB, mais a arte cumprirá o seu papel de romper com a tradição, de atuar como elemento de transformação(seu caráter revolucionário), de alterar os conceitos universalizados do belo, do harmônico, quanto mais reprodutível e acessível for. Para ele, a reprodutibilidade deve ocupar o centro da discussão. É ela o verdadeiro caminho para a desmitificação da arte e pela derrocada da aura (atributo do original) como valor cultural.